22.4.13

Inconfidência Mineira: o Iluminismo nos trópicos



Rogério Paiva – Sessão solene do IHGT - 21 de abril de 2013


Em fins do século XVIII, planejou-se em Minas Gerais o levante que foi, nas palavras de Celso Brant, o "único projeto político que o Brasil já teve"[1], e que passou à história como a Inconfidência Mineira. Paralelamente, na Europa, desenvolvia-se a revolução intelectual iniciada em fins do século XVII e que teve em Voltaire seu símbolo maior: o Iluminismo. Entre os dois movimentos havia uma estreita relação que não passou despercebida às autoridades portuguesas da época.
Os pensadores do Iluminismo defendiam o uso da razão para clarear a relação do homem com o mundo. Em muitos aspectos, o século XVIII ainda estava mergulhado nas trevas da Idade Média. No campo político dominava o absolutismo monárquico aliado ao poder supremo da Igreja Católica. Uma época em que a liberdade de expressão vivia constantemente ameaçada. Um tempo em que as opiniões heterodoxas eram consideradas subversivas e normalmente terminavam em prisões e tortura, nos tribunais dos reis ou da Inquisição. A Igreja coroava os monarcas atribuindo origem divina ao seu poder ilimitado, em contrapartida, assegurava para si o monopólio da fé, instituindo-se como religião oficial. Os privilégios do clero, somados aos da nobreza, esmagavam as classes populares relegando-as à miséria material e cultural.
Não obstante, nesse contexto de opressão os ideais de liberdade, igualdade e fraternidade começavam a ser amplamente divulgados. Influenciaram a Revolução Francesa em 1789 e outros projetos de emancipação política, como a independência dos Estados Unidos em 1776. O Iluminismo, nas palavras de Eduardo Frieiro, infiltrava-se nas consciências como “um espírito revolucionário que redundaria na maior luta de ideias dos tempos modernos”[2].  Os intelectuais de vanguarda confrontavam abertamente as instituições mais tradicionais da Europa, sobretudo a Igreja e o Estado absolutista. No século das luzes, a razão buscava a construção de um conhecimento libertador, de um progresso que fosse útil à melhoria das condições de vida das pessoas e não apenas à ilustração dos tiranos. 

No Brasil setecentista o cenário geral era de exploração predatória e de alienação cultural. Os prepostos da Coroa transplantavam para a América portuguesa todos os desmandos dos reis absolutistas e de seus ministros plenipotenciários. Implantavam o terror, subsidiados pelo rigor das Ordenações Filipinas ou de livros de capa verde[3]. Para os portugueses, governar era confiscar riquezas, fiscalizar e cobrar impostos, impedir descaminhos, dificultar a educação, proibir livros, perseguir e punir os insatisfeitos. Em suma, governar era impedir o progresso da colônia a todo custo[4].  

Em Minas, pelas riquezas das lavras de ouro e diamante, o rigor da vigilância foi ainda maior. Proibia-se a abertura de estradas, de fábricas e de engenhos. A dedicação à mineração deveria ser exclusiva. Havia que se abarrotar navios destinados anualmente a Lisboa. E toda essa riqueza sequer ficava por lá, porque era transferida para a Inglaterra por força do Tratado de Methuen[5]. Para maior eficiência na arrecadação da Fazenda Real, criou-se, em 1720, as Casas de Fundição aliadas a uma carga tributária tão exorbitante que provocou reação imediata. Naquele ano, durante uma revolta de mineradores o governador Conde de Assumar, depois de um recuo estratégico, fez ver a Felipe dos Santos como se puniam os insatisfeitos[6]. Punir exemplarmente era a palavra de ordem que os governadores traziam de Portugal.

Contudo, apesar da mão de ferro das autoridades portuguesas, no final do século XVIII o espírito iluminista já circulava por aqui, oculto nas bibliotecas particulares, avidamente buscado pelos intelectuais leigos ou religiosos. Apesar das dificuldades na aquisição de livros e da proibição de muitos deles[7], as obras mais significativas da época, editadas na Europa e nos Estados Unidos, chegavam a Minas com impressionante rapidez[8]. Emblemática era a biblioteca do Cônego Luís Viera da Silva, na qual “o espírito de satã penetrara, cavilosamente escondido nas obras dos escritores e filósofos que discutiam o regime que convinha impor aos homens para fazê-los felizes, benignos e amigos das luzes”[9] . O Cônego possuía a maior biblioteca particular de Minas, com cerca de oitocentos volumes que reuniam muitas obras portadoras de ideias revolucionárias. Nela, segundo Celso Brant:

vamos encontrar a prova evidente de que os grandes pensadores da época ajudaram a acalentar e a nutrir os ideais dos inconfidentes. Afastado do mundo na pacata e conservadora Mariana, o cônego enfrentou corajosamente as proibições régias e reuniu uma biblioteca que era um verdadeiro vendaval de ideias, na qual se uniam, como numa mesma barricada, os enciclopedistas franceses e os racionalistas ingleses, o mais avançado pensamento político americano e a filosofia alemã [10]

 Também havia livros suspeitos nas bibliotecas de José de Resende Costa (pai) e de Alvarenga Peixoto, ficando a dúvida quanto às de Gonzaga e Cláudio Manuel da Costa, cujos livros não foram indicados nos autos de sequestro da devassa, mas cuja obra literária deixa transparecer a influência Iluminista.  É notoriamente sabido que a elite intelectual da época lia largamente Diderot e D’Alembert, Montesquieu e Rousseau e, sobretudo, Voltaire. Aliás, o estilo satírico de Francois Marie Arouet, está presente nas Cartas Chilenas, em que Tomás Antônio Gonzaga, sob o pseudônimo de Critilo, faz duras críticas aos desmandos de certo Fanfarrão Minésio, o governador Luiz da Cunha Meneses, que submeteu Minas Gerais a um dos governos mais despóticos do século XVIII.  

Cunha Menezes governou Minas de 1783 a 1788, exatamente o período de gestação da conjuração mineira. Desde esta época Tiradentes já andava inquieto, com uma cópia da declaração de independência norte-americana no bolso, pedindo a um ou outro que lhe traduzisse trechos.  Em agosto de 1788, no Rio de Janeiro, o Alferes encontrou-se com o jovem José Alvares Maciel. Recém formado em Filosofia pela Universidade de Coimbra, Maciel chegava ao Brasil depois de viajar também pela Inglaterra e França. Falou ao Alferes sobre a situação política da Europa, às vésperas da Revolução Francesa e fez também considerações sobre a independência da América inglesa. Disse que, na Europa, admirava-se o fato de o Brasil, com tamanho potencial, ainda estar sob o domínio de Portugal, um pequeno reino da periferia europeia. O Alferes, por sua vez, revelou ao jovem Maciel todas as suas mágoas. Era sabedor de todos os vexames que o povo sofria e testemunha da sede de ouro dos portugueses. Ele mesmo, como cavalariano dos Dragões, escoltara diversos comboios que escoavam o ouro das montanhas mineiras para o porto do Rio de Janeiro. Tinha também mágoas pessoais referentes ao tratamento diferenciado que era dado aos portugueses em detrimento dos mazombos[11].  Apesar de sua dedicação à farda e de receber sempre as missões mais arriscadas, na hora das promoções, Tiradentes era sempre preterido pelos reinóis. 

A conversa com Alvares Maciel ateou verdadeiro incêndio revolucionário na alma do Alferes. O conhecimento das agitações provocadas pelas teorias iluministas na Europa deu a ele o fundamento de que necessitava para agir, afinal, “é impossível ao homem agitar grandes planos sem a influência de grandes e bem definidas ideias”[12]. O momento era, portanto, mais que oportuno e sem perda de tempo partiram ambos para Minas. O mesmo rastilho de pólvora revolucionária que varria a Europa haveria de incendiar também as Gerais. Começaram a sedução por ninguém menos que o Ten. Cel. Francisco de Paula Freire de Andrade, o comandante dos Dragões[13], e em pouco tempo já tinham envolvido magistrados, poetas, sacerdotes, militares e fazendeiros. O povo seria convocado no momento oportuno. Sucediam-se as reuniões na casa de Freire de Andrade. Encontros a portas fechadas. Conversas ao pé do ouvido em estalagens de beira de estrada ou brados enfurecidos do Tiradentes por toda a parte. Decidiram desde as leis da república a ser implantada, a emancipação dos escravos e a transferência da capital para São João del-Rei até a forma da bandeira, que traria, por sugestão de Alvarenga, o célebre verso de Virgílio: “liberdade ainda que tardia”. Pensou-se na pólvora, nos cavalos e nos homens para a batalha; na tomada do poder e na defesa e manutenção da república vindoura. Escolheram, por fim, a senha: “tal dia é o batizado”. O sonho da república era tão bonito que lhes tirava o sono, e no auge da empolgação, alguns chegavam a dar pulos de alegria. Que viesse a oportunidade e se faria em Minas a república. A oportunidade era aguardada para fevereiro de 1789. O tal dia do batizado seria o mesmo da derrama[14]. Julgavam que esta seria uma data de grande descontentamento popular, ocasião propícia para o levante, quando o povo certamente se uniria aos guerreiros da liberdade. 

A reviravolta veio a 15 de março de 1789, quando o português Joaquim Silvério dos Reis, traiu cinicamente o movimento, denunciando-o ao Visconde de Barbacena, então Governador de Minas. Suspende-se a derrama. Sucedem-se as prisões: Gonzaga, Alvarenga, Padre Carlos, todos acorrentados e encaminhados imediatamente para o Rio de Janeiro, onde se juntariam ao Alferes já preso na ilha das cobras. Cláudio, preso em Vila Rica, morre misteriosamente no cárcere. Sucedem-se os confiscos, os interrogatórios e as delações[15]. O corpo de delito teria farto material com as denúncias de seis traidores e  os  depoimentos de mais de setenta testemunhas arroladas à primeira hora. Os ratos são sempre os primeiros a abandonar o barco que afunda. Para a glória imortal do Alferes, todos foram unânimes em apontá-lo como o líder da conjuração. Iniciaram-se dois processos, um em Minas e outro no Rio, e três anos depois saiu a sentença que condenou o Tiradentes à morte e os demais ao exílio. Terminara mal o sonho de independência?

No curto espaço de trinta anos, Dom Pedro, neto do algoz de Tiradentes, Dona Maria I, e também leitor de Voltaire, faria a independência possível naquele momento e que o tempo consolidaria, nos moldes dos planos dos inconfidentes. Veio novo “dia do batizado” a 15 de novembro de 1889, exatos cem anos após o aparente malogro da Conjuração Mineira. Com Deodoro, a República tão sonhada tornara-se realidade. O martírio do Alferes não fora em vão. Os ideais da Inconfidência Mineira triunfaram. Venceu o Iluminismo nos trópicos. Voltaire sorria discretamente.


Referências bibliográficas:

Autos de Devassa da Inconfidência Mineira. Vol I. Belo Horizonte: Imprensa Oficial de Minas Gerais, 1976.

BRANT, Celso. A revolução brasileira. Rio de Janeiro: ERCA editora, 1985.

FRIEIRO, Eduardo. O diabo na livraria do cônego. 2.ed. São Paulo: Itatiaia, 1981.

JOSÉ, Oiliam. Tiradentes. Belo Horizonte: Imprensa Oficial de Minas Gerais, 1974.

TORRES, Antônio. As razões da Inconfidência. São Paulo: Itatiaia, 1957.


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1 BRANT, Celso. A revolução brasileira., p. 25.
2 FRIEIRO, Eduardo. O diabo na livraria do Cônego, p.40.
3 O regulamento inflexível do Distrito diamantino, de 1771. 
4 TORRES, Antônio. As razões da Inconfidência,  p. 65) 
5 O Próprio Marquês de Pombal atesta isso em carta de 1759. 
6 Felipe dos Santos, depois de liderar uma rebelião contra o estabelecimento das Casas de Fundição, teve suas reivindicações falsamente aceitas pelo Conde de Assumar, que em seguida mandou atá-lo às caldas de quatro cavalos disparados em sentidos opostos, despedaçando-o pelas ruas de Vila Rica. 
7 Em 1711 foi apreendida e destruída em Lisboa a edição do livro de Antonil, Cultura e opulência do Brasil por suas drogas e minas, por ser considerado perigoso aos intentos colonialistas. 
8 BRANT, Celso. A Revolução Brasileira, p. 151. 
9 FRIEIRO, Eduardo. O diabo na livraria do Cônego, p. 22. 
10 BRANT, Celso. A Revolução Brasileira, p. 152. 
11 Denominação pejorativa dada pelos portugueses aos brasileiros.  
12 JOSÉ, Oiliam. Tiradentes, p. 68. 
13 Cunhado de José Alvares Maciel. 
14 Medida autoritária que previa a cobrança por parte da Fazenda Real de todos os impostos atrasados, de uma só vez, indistintamente. 
15 Além de Silvério do Reis, também fizeram denúncias por escrito ao governador: Basílio de Brito Malheiros, Inácio Correia Pamplona, Ten. Cel. Francisco de Paula Freire de Andrade, Francisco Antônio de Oliveira Lopes e Domingos de Abreu Vieira.



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