10.12.12

A difícil relação de uma cidade com sua memória histórico-cultural




Tiradentes é mesmo um lugar engraçado, para não dizer esquisito. Dizem que tem praga de padre, e que por isso nada vai adiante. Lendas a parte, o fato e que por aqui os projetos se desvirtuam no meio do caminho e os interesses pessoais acabam prevalecendo sobre os coletivos. Por outro lado, a população, de modo geral, não se importa muito com as coisas do lugar. Espera viver das benesses de candidatos que de quatro em quatro anos estampam suas figuras sorridentes em santinhos, com a tradicional promessa de “saúde e educação”. Nessas ocasiões, a cultura raramente é lembrada, a não ser se estiver atrelada ao turismo, que é o carro chefe da economia local e a bandeira predileta de todos. Com a história do município, então, a coisa é muito pior. Não há e nunca houve uma política de preservação dos arquivos da cidade que são invariavelmente destruídos pela ignorância ou pelo descaso, ou são transferidos para outros locais, como é o caso do arquivo histórico paroquial, hoje localizado em São João Del-Rei. 

Atualmente está para ocorrer algo que, provavelmente, não será do interesse da maioria da população tiradentina, mas que certamente terá reflexos importantes no futuro, porque a história não tolera a desfeita e um povo sem memória perderá irremediavelmente sua identidade.

A história e cultura do nosso município, não entendida, obviamente, apenas como manifestações culturais programadas para turista ver em magníficos eventos de massa, estão sintetizadas, dentre outros, em dois núcleos de suma importância, que são a biblioteca e o arquivo público municipais. 

É incrível que uma cidade de trezentos anos ainda não tenha  encontrado um espaço exclusivo para guardar e preservar sua memória, para estimular sua cultura. O resultado disso é que os acervos tanto da biblioteca como do arquivo, vivem mudando de casa em casa e agora, já que ainda não foi renovado o comodato do sobrado dos Quatro Cantos com o IEPHA, corre o risco de ter que mudar mais uma vez. Comenta-se pela esquinas que o prédio poderá ser cedido à UFMG... E agora? Para onde irão biblioteca e arquivo? Será esta uma preocupação de nossas autoridades e do nosso povo?

A história vem se repetindo com sérios prejuízos para a preservação dos livros e documentos. Muda-se o acervo daqui para lá, como um estorvo a ser enxotado. Encontra-se um lugarzinho qualquer. Reúnem-se pessoas de boa vontade para organizá-los pela enésima vez, até que o ciclo se reinicie. Tal como Sísifos, condenados a empurrar uma pedra morro acima eternamente, essas pessoas ainda resistem heroicamente. Até quando?

Para entender melhor essa difícil relação de uma cidade com sua memória cultural, essa fuga da realidade, essa negação do passado, é necessário fazermos uma regressão, quem sabe a psicanálise não possa nos ajudar a lidar com essa nossa esquizofrenia coletiva. Com esse intuito, segue-se breve histórico das andanças do nosso acervo histórico-cultural:

Biblioteca Pública Municipal

No fim do século XIX, em 1898, Herculano Veloso, então presidente da Câmara e agente executivo, cria uma biblioteca pública, numa das salas da Câmara. Com base nesse acervo, em 1955, o Prefeito, Dr. Augusto Baena Cruz e Paiva, cria por lei a Biblioteca Thomás Antônio Gonzaga, para a qual doou parte de sua biblioteca particular. A biblioteca funcionava numa das salas da Casa do Pe. Toledo, então utilizada como Prefeitura e Câmara Municipal. Em 1961 ocorre o primeiro golpe contra a biblioteca, com a mudança da Prefeitura para a Rua Resende Costa, nº 7. Na mudança da biblioteca não se sabe o que foi feito com a maioria dos livros.

Por volta de 1971, o prefeito Francisco Barbosa Júnior cria, novamente, a biblioteca pública municipal, no prédio da Prefeitura. Para aumentar o acervo estabeleceu um sistema de sócios que doavam dinheiro para a compra de livros. Três anos depois, em 1974, com a obra de restauração do prédio da Prefeitura pelo IPHAN, a biblioteca foi depositada no térreo do sobrado da Nadir, Rua Direita, toda desorganizada. 

Terminada a restauração, a biblioteca voltou para a Prefeitura novamente organizada e com a compra anual de livros entre 1976 e 1982.

Entre os anos de 1985 e 1986 a biblioteca foi desalojada de sua sala para dar lugar ao Departamento Municipal de Turismo. Desde então a peregrinação prossegue, com sérios danos para o acervo. Já passou pelos seguintes locais: salão do Grêmio, no Largo das Forras; casa do Conselho Particular de Santo Antônio, no Pacu; antigo posto de saúde de São Vicente de Paula, Rua Resende Costa; casa da Ernestina, por empréstimo de John Parsons; Escola Marília de Dirceu; garagem do Museu Pe. Toledo; quadra poliesportiva e Sobrado dos Quatro Cantos, onde está atualmente.

Com as andanças, muitos livros se perderam, foram roubados ou, simplesmente, foram destruídos pela chuva.  Para ilustrar, citemos o livro “Minas Gerais em 1925” obra rara e valiosa, atualmente desaparecida, e remanescente da doação do Dr. Augusto Baena.

Arquivo Municipal

O atual arquivo municipal inclui o que restou do arquivo histórico do Senado da Câmara da antiga Vila de São José. No fim do século XIX ou começo do XX, Herculano Veloso organizou o arquivo em 146 maços contendo códices e documentos avulsos dos quais nos restou apenas a listagem com sua letra. Um documento importante do arquivo da antiga Câmara que resistiu foi o “primeiro livro de acórdãos da Câmara”, que se salvou por mero acaso, por não estar no arquivo. Foi localizado em Belo Horizonte e depois transferido para o IHGT e nele reincorporadas as duas primeiras páginas, que contem o auto de Criação da Viação da Vila, que estava na prefeitura de Cataguases.

Uma teoria, não comprovada, para explicar a destruição do arquivo antigo é que o primeiro prefeito municipal Jose de Freitas, nomeado em 1930 com a criação da Prefeitura, teria mandado incinerar grande parte dos códices antigos, quase todos do século XVIII. Mas há referência a esses documentos em um discurso do prefeito Evandro Mendes Viana, em 1933, o que deixa dúvidas quanto à destruição de 1931. 
Originalmente, a documentação ficava no prédio da Câmara, que funcionou também como Fórum, no final do século XIX. Em 1848, quando foi extinto o município, o arquivo foi levado para São João del Rei e devolvido com a recuperação da autonomia, em 1849. Ressalvada esta interrupção, o arquivo permaneceu no prédio da Câmara ate 1918, quando foi para a Casa do Pe. Toledo, então sede da Prefeitura e Câmara, e lá permaneceu até 1960.

Com a mudança da Prefeitura para a sede atual, na Rua Resende Costa, em 1960/1961, os documentos foram colocados no sótão ou espalhados por armários e almoxarifado. Em meados dos anos de 1970, o prédio da Prefeitura entrou em obras e os documentos foram levados para a Sede do Aimorés Futebol Clube, onde, provisoriamente, funcionou a sede do Executivo. Os documentos foram indiscriminadamente atirados pelo chão, depois de haverem sido parcialmente organizados... Terminada a obra na Prefeitura, os documentos voltaram em carroceria de caminhão, novamente desorganizados. 
Entre o final dos anos 70 e início dos anos 80, mais uma vez o acervo foi retirado do almoxarifado e acondicionado em caixas-arquivo e estantes no sótão da Prefeitura, onde funcionava a sede do Legislativo. Nesse momento, o acervo já tinha passado por uma organização pela Profª. Lucy Fontes Hargreaves, com ajuda de alunos do Colégio Local.

Em 1983/1984, juntamente com a Câmara Municipal, o arquivo foi transferido para o prédio do antigo Fórum e colocado em lugar impróprio, em prateleiras de madeira encostadas na parede, à mercê da umidade.

Há cerca de oito anos, o acervo foi transferido, juntamente com o arquivo mais recente da Prefeitura, para o Sobrado dos Quatro Cantos, desapropriado pelo IEPHA/MG e pomposamente nomeado “Centro de Cultura e Cidadania”. Criou-se em lei o Arquivo Municipal, mas nunca teve funcionário habilitado...

Em todo esse histórico de mudanças, descaso e destruição de livros e documentos antigos, a única vez em que se cogitou a construção de um espaço específico para acomodá-los foi por ocasião da construção do Centro Cultural Yves Alves, por volta de 1996/1998. 

Sob projeto do arquiteto Glauco Campelo, foi construído em imóvel desapropriado pela prefeitura, na Rua Direita, um grande espaço chamado “Centro Comunitário”. Com verba pública, através do Programa Nacional de Cultura-Pronac, com aporte de verba da Rede Globo, mediante desconto no imposto de renda, construiu-se o prédio. Do projeto, que teve a Sociedade Amigos de Tiradentes – SAT como proponente, constava que as duas salas da direta seriam para colocar os documentos, onde teriam conservação e tratamento. A sala do meio seria da biblioteca, com salinha de leitura, e a da esquerda uma pequena livraria. Na aprovação do projeto no MINC, constava a finalidade do prédio: BIBLIOTECA PÚBLICA E ARQUIVO MUNICIPAL, mas os livros e os documentos jamais chegaram lá. Nada do objetivo foi cumprido. O projeto evoluiu para ter um auditório, para receber a biblioteca e hoje nem pode ser usado livremente pelas entidades de Tiradentes e Prefeitura, sua verdadeira proprietária. 

Diante da atual ameaça de despejo do Arquivo e da Biblioteca, o Instituto Histórico e Geográfico de Tiradentes, no cumprimento de sua missão, tomou a iniciativa de solicitar ao Governador do Estado de Minas Gerais em carta do dia 7 de dezembro, a manutenção do comodato entre o IEPHA e a Prefeitura Municipal, ou com outra instituição que possa garantir a manutenção do Sobrado dos Quatro Cantos para a biblioteca, o arquivo, o acervo artístico, espaço de reuniões a ser utilizado pelos Conselhos Municipais e outras finalidades de cunho comunitário lá desenvolvidas. A expectativa é que o bom senso prevaleça, que o comodato seja renovado e que o acervo lá permaneça. Caso contrário, solicitamos com veemência às autoridades do executivo e legislativo municipal para a construção de um local adequado e exclusivo para a biblioteca e para o arquivo, que coloque fim a essa andança extremamente prejudicial à sua preservação.  Já é hora de desmentirmos essa lenda da praga de padre e de assumirmos perante nós mesmos e perante a posteridade a nossa responsabilidade pela preservação de nossa memória histórico-cultural. Caso contrário, seremos todos responsabilizados tal como os (ir)responsáveis pela destruição ocorrida até agora.


Instituto Histórico e Geográfico de Tiradentes

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